Encontro-me hoje numa situação em que recordei e me foram importantes alguns textos escritos no final de 2011. Com esta tarefa, encontrei este - Teias, Laços e Possibilidades - que ora publico.
Mantém-se atual.
Esta semana conheci um mito que ainda não conhecia. Sempre é tempo! O
mito da aranha, tecedora de teias. Teias que são moradas, são laços, limitam,
mas também possibilitam a vida. Como naquela noite havíamos dançado por entre
fitas crepe, ora emaranhados, ora construindo estruturas com estas fitas, logo
entendi tudo o que acontecia dentro de mim: está aí a explicação para minha
fobia de aranha: o emaranhamento, a prisão, a claustrofobia. Agora entendo. Fechou-se
o ciclo do entendimento de dois medos: a claustrofobia e o pavor de aranhas.
E é exatamente esta a sensação que me passa a teia, a aranha: falta de
ar, prisão, confusão de emaranhados que tomam conta e que tiram o controle de
meus movimentos, de minha vida. Trauma de infância? Provavelmente, mas não vem
ao caso.
O que importa agora é a transformação deste mito e de seus significados
em mim. É isto que vou trabalhar. Se teia envolve e domina, teia também é porto
seguro, é um espaço a ser transitado e vivido e, finalmente, teia pode ser
construção nossa. É por aí que eu vou.
Se estou laçada por fitas adesivas, tenho um espaço de prisão, é certo.
Mas é um espaço em que caibo. Se caibo, respiro. Respirando, vivo. Vivendo,
transcendo. Então não há mais limites. Neste espaço eu crio. Crio meus
movimentos, transformo o espaço. Transformo, inevitavelmente, a estrutura e os
fios da teia. Transformo meu corpo e meus movimentos.
Uma teia me prende com toda sua cola – como de fita crepe – mas também me
segura: “Do chão você não passa, menina!” É aqui onde vivo. Vivo na TERRA, onde
também há AR. Sou terra e ar. É transitando pelos fios sedosos e pegajosos da
teia que eu a sinto, exploro e me mostro. A partir dos fios que aí estão eu
teço novos caminhos, novos espaços.
Antes eu dançava “engessada”. E o engraçado é que me sentia livre e
feliz. Era o ballet, dança regrada, em que o bailarino deve descobrir sua
liberdade, suas possibilidades a partir daquela teia restrita. Aí está a grande
liberdade, a beleza do ballet: quando descobrimos, dentro daquela teia, o
infinito. Passados muitos anos, hoje ando por outras teias. Com danças em que
descobri meu corpo cultivado e constituído de outra estrutura. A estrutura de
minha teia sanguínea e laços familiares.
Desconstruí ao longo de algum tempo, aquelas tessituras de ballet, e hoje
começo a descobrir novos fios que tecerão uma nova teia. Agora tenho fios de
ballet e fios de família. Como tatuagens e rugas na testa, marcas de caminhos,
tempo e movimento. O material de uma vida, e de novas estruturas em construção.
Nessa desconstrução descobri raízes num corpo diferente, muito diferente,
mas também muito próximo do que me seja familiar. Um corpo magro e anguloso,
com movimentos peculiares, cuidadosos, ora tensos, e buscando o relaxamento.
Movimentos que portam células da família Boff. Essa estrutura que num ballet
fora limitante e, com esforço, desconstruída, agora se me afigura insistente,
como novas possibilidades.
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Tudo acontece a partir do nível TERRA, a partir de uma estrutura
limitada. Deste limite, com os pés na terra, caminhamos para novas tessituras. E
a teia que nos envolvia agora era a doença do pai. Ao longo de 2 meses de
internação hospitalar, o foco era seu corpo. O carinho que aliviava sua dor,
seus membros que necessitavam de cuidados, o desejo de saúde para seus órgãos,
o tecido de sua pele, suas células, células Boff.
À medida que se anunciava a inevitabilidade de sua partida, eu me
aproximava ainda mais daquele corpo que insistia com vida pulsante e cheiro de
pai. Em cada partezinha dele reconhecida, nas sardas, cotovelos e joelhos,
testa à mostra e nariz, ali identificava minha primeira casa, tecidos pelos
quais caminhei, fitas que me envolveram e deixaram cola em mim.
Este corpo se foi. Alguns fios desta teia se desfizeram... E a partir
dela, seguimos nossa própria tessitura. Agora os corpos são outros, somos onze,
nos movendo por entre laços, criando estruturas novas, a partir daquele e de
outros espaços, daquele e de outros movimentos, agregados e renascidos.
A estrutura que agora descubro, das células Boff, é terreno fértil para a
construção de uma nova dança. Os limites existem em qualquer dança – espaços,
laços, elementos tirados e agregados. Existem no tempo e no espaço. Limites: são
eles que ordenam nosso cosmos, possibilitando criações, estruturas, teias de
aranha. Gerando vida, assegurando morada. A morada da dança e da criança. Qual
dança?
A dança de um corpo magro e anguloso, de certo ponto de vista, movimento desajeitado.
A dança deste corpo que convive com outros, se mescla às fitas e fios de
outros, constrói e desconstrói, respirando, vivendo, mexendo.