Hoje ouvi e assisti mais uma vez à fogosa obra de Tchaikovsky, composta
no ano de 1882 em homenagem à vitória do exército russo sobre Napoleão - o
grande estrategista de guerra e imperador francês e seus homens - no ano de
1812.
Tive a fortuna de estar, dessa vez, numa situação diferente das outras em
que ouvia obra: estava diante de meu marido, homem fascinado por história da
guerra, jornalista conhecedor e fascinado por guerras. Uma vez que se propôs a
assistir ao concerto comigo - e persistiu até o final – pensei que poderia
agradá-lo dizendo: “Esta obra hoje é para tua homenagem!” Quem sabe assim se
entusiasmaria mais em ficar até o final...
Meu objetivo foi atingido. Mas a surpresa foi dupla. Por estar nesta
situação nova, e sensibilizada com os gostos tão diferentes desta outra pessoa,
percebi coisas inesperadas na música de Tchaikovsky. Toda uma simbologia jamais
pensada por mim. É curioso e divertido mas, sobretudo, fascinante o potencial
que se apresenta para podemos explorar quando nos dispomos a perceber o gosto e
o jeito “mais estranho do mundo” – estranho ao nosso mundinho. O gosto e o
jeito do estranho que vive ao nosso lado!
Antes disto eu ouvia a Abertura de 1812 sentindo sua grandiosidade, magnitude
e força explodindo em meu peito fazendo vibrar todas as minhas células. Após
conhecer a história, cheguei a pensar: “Ah, sim, uma música assim tem tudo a
ver com a vitória de um exército em uma guerra...” E só. Minha experiência
permanecia no plano da sensibilidade idiossincrática, sem grandes interesses
voltados para a história – e menos ainda, claro, para a guerra, que não faz meu
gênero.
Mas diante da compaixão, do exercício de sentir-com meu marido – que
apesar de próximo também é, para mim, um homem de gostos e experiências tão
distintos dos meus – me acordei para um aspecto crucial desta música de cunho
político e histórico. Em um dos temas da obra, em momento clímax, as trombetas
reboam um trecho bem conhecido... Meu marido, entusiasmado, não se cansava de
repetir ao meu lado aquela melodia, juntamente com a orquestra. Aquilo entrou
em minha memória, dessa vez pela via da história das guerras, mais do que da
música, e ficou reboando, ecoando... Já ouvira aquela melodia em outro lugar.
Não fora em outras ocasiões, na própria “1812” , mas sim em outro lugar, em outra música!
Como assim? Onde seria? Não estamos tratando de uma obra prima?
Sim. Mas num sobressalto de quem está conectado à história daquela guerra
entre Rússia e França, surgiu-me “A Marselhesa”, hino nacional francês, bem no
cerne desta obra russa, comemorando sua vitória exatamente sobre a França. Num
ato explicitamente antropofágico, Tchaikovsky apoderou-se do que poderia haver
de mais sagrado para um povo: seu símbolo máximo, seu hino. Devorou-o “sampleando”
aquele trecho inicial da “Marselhesa” em meio ao “hino” da vitória dos russos.
A Marselhesa, hino nacional e, mais que isto, hino da conquista
democrática na França – e por tabela no mundo ocidental – estava agora sendo devorada
pelos russos. Como o trunfo em um ritual antropofágico, a Rússia derrotava a
França e absorvia a força do inimigo, alimentando-se de seu símbolo maior.
Deste modo, por séculos, os russos seguiriam alimentando-se da força francesa, da
cultura ocidental – num ato de canibalismo cultural.
A vitória real dessa história talvez possa ser observada de um outro
ponto de vista também. Diferente de carne, não se rouba, não se troca ideias,
mas se multiplica. Cultura se multiplica, se transforma, se funde e se confunde.
Passados cem ou duzentos anos, é maravilhoso poder entender essa história – as
tramas e os sentimentos complexos de uma cultura representados na música feita
por um homem.
Possivelmente esta simbologia na “Abertura 1812” – a inserção da
“Marselhesa” como um ato antropofágico – pode já ter sido percebida e analisada
por outros estudiosos. Mas me encanta e me apraz o fato de eu ter percebido
isto finalmente, por mim mesma. Trabalhando minha sensibilidade a serviço das
vivências de outra pessoa, conectada com minha experiência intelectual, cheguei
a esta conclusão, então nova para mim.
Nesta mesma noite me acordei também para outro “sampler” que thcaikovsky
fez, agora em sua própria obra. Dez anos mais tarde, ao compor para um ballet
infantil e fantasioso, comemorativo da festa de natal, ele inseriu no
“Quebra-Nozes” um trecho de sua grandiosa obra guerreira – “Abertura 1812” . Trata-se de um trecho
mais melodioso, no momento em que garotos de “O Quebra-Nozes” brincam de
soldado com seus cavalinhos de pau e suas espadas de madeira. Com música e
leveza, a força e pujança de uma nação pode se perpetuar através de gerações.
Adoro Tchaikovsky, adoro o conserto nº 1, adoro a abertura 1812, invejo esse gênio!
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