quinta-feira, 22 de março de 2012

"PINA" - 3D



O primeiro filme de uma nova era. Com um filme de dança em três dimensões, a dança não mais será a mesma. Talvez coisas semelhantes já tenham sido pensadas e ditas em outros momentos históricos...
A dança acontece em sua fugacidade e... Difícil acompanhar sua história, difícil captá-la numa caixinha, como reproduzi-la? Primeiro surgiu a fotografia. Ah, para historiadores, um “bem” precioso! Agora sim, podemos saber como se dançava, pelo menos a partir do século XIX. Uma foto é muito mais fiel que pinturas. Será? Será assim fácil?
Depois veio o cinema. Mudo. “Fotografia” com movimento. Acelerado. Lá estavam aqueles montes de “bonequinhos” se mexendo rapidamente... Com bastante atenção e um olhar desconstruído e reconstruído , podemos captar o que poderá ter sido, talvez, um dia, os movimentos de Anna Pavlova, de Nijinsky, e companhia.
Com o tempo, os movimentos passaram a apresentar o seu ritmo natural, e uma música pode ser sincronizada a eles! "Agora sim, temos a “Morte do Cisne” e o “Fauno” dos bailarinos."
Porém a grande revolução surgiu com a fala sincronizada no cinema, na década de 1930, e a explosão dos musicais. Uma efusão de criatividade unindo música, dança e cinema, perpetuados pela tecnologia de ponta, guardados em rolos, numa lata.
Estava aí o movimento em sua plenitude...
Mas, movimento em plenitude tem três dimensões, tem energia, e uma série de sensações inexplicáveis! E mais, conhecer um ídolo ao vivo não se compara a nada. O público não deixou os teatros, as filas seguiram imensas, a concorrência permanece até hoje.
...
Sentada na imensa sala de cinema, com todo o luxo e conforto dos shoppings de hoje, inicia “PINA” – 3D. Já havia assistido ao filme, sem a tecnologia tridimensional. A expectativa para essa nova tecnologia – que eu, particularmente, ainda não havia experimentado – era grande. Mas, prevenida, eu mesma já me alertava: “Talvez não tenha muita diferença! Você já assistiu ao filme... Talvez o “3D” não vá criar um efeito tão forte... Vá com calma.”
Inicia o filme. Já na primeira cena me senti como um “ingênuo” personagem do início do século XX – se pensarmos anacronicamente – deslumbrado com a incrível! Inesperada! Possibilidade daquilo! Meu Deus! E a frase não poderia ser outra, se não aquela já repetida pelos “ingênuos personagens do passado”: “Meu Deus, a dança nunca mais será a mesma! A partir deste momento, essa arte, nas telas, está superando até mesmo sua realidade.” Pensar aquilo foi automático. E em seguida, muito divertido. Eu estava dizendo tudo aquilo mesmo em minha mente?! Então: “Será a dança superada pelo cinema em três dimensões?” Eu ria de mim mesma, mas queria acreditar. Queria e não queria. Quanto espanto.
A primeira cena do filme nos aproxima lentamente de um grande palco italiano à nossa frente. Nós, espectadores, sentamos na platéia. Pensei: “Bem, agora está aí. O teatro transferido para uma sala de cinema. É isto.” E logo acrescentei: “Pois é... talvez no início do século XX tenha-se pensado exatamente assim, e...” Sabemos que não foi assim, que a dança vivida não foi transferida para o cinema ou para o vídeo. Cada um é diferente do outro. E tem mais! A tal energia – que não vemos, não pegamos, mal sentimos vez que outra, não está presente. A energia de um corpo pulsante presente, a energia vital. A coisa não acontece ao vivo. Dizem que tem algo mais... E... como é mesmo esse algo mais?
Porém logo eu descobri que desta vez, apesar da “energia ausente”, tinha algo mais, sim, algo além do teatro reproduzido. Um filme de dança em 3D é diferente de se estar no teatro! Os bailarinos foram cuidadosamente colocados em cena – e não entraram – foram colocados pelo cineasta, como bonequinhos, como num vídeo-dança, é lógico! E não bastando, à medida que se moviam, a câmera nos fazia a gentileza de girar em torno de cada corpo, mais próximo e mais próximo... Saltei da cadeira... Onde estava o cheiro daquele suor? Meu Deus! Da plateia passamos às coxias, de lá para cima... De súbito éramos transformados em anjos.
Pensando bem, com a dança em 3D, agora sim, somos anjos assistindo ao palco E aos bastidores dos mágicos bailarinos!
Dizem que “aquela energia” está ausente. Mas, com certeza, as possibilidades criativas são imensas. Entramos para mais uma nova era.



segunda-feira, 12 de março de 2012

Nova audição para a “Abertura 1812” de Tchaikovsky



Hoje ouvi e assisti mais uma vez à fogosa obra de Tchaikovsky, composta no ano de 1882 em homenagem à vitória do exército russo sobre Napoleão - o grande estrategista de guerra e imperador francês e seus homens - no ano de 1812.
Tive a fortuna de estar, dessa vez, numa situação diferente das outras em que ouvia obra: estava diante de meu marido, homem fascinado por história da guerra, jornalista conhecedor e fascinado por guerras. Uma vez que se propôs a assistir ao concerto comigo - e persistiu até o final – pensei que poderia agradá-lo dizendo: “Esta obra hoje é para tua homenagem!” Quem sabe assim se entusiasmaria mais em ficar até o final...
Meu objetivo foi atingido. Mas a surpresa foi dupla. Por estar nesta situação nova, e sensibilizada com os gostos tão diferentes desta outra pessoa, percebi coisas inesperadas na música de Tchaikovsky. Toda uma simbologia jamais pensada por mim. É curioso e divertido mas, sobretudo, fascinante o potencial que se apresenta para podemos explorar quando nos dispomos a perceber o gosto e o jeito “mais estranho do mundo” – estranho ao nosso mundinho. O gosto e o jeito do estranho que vive ao nosso lado!
Antes disto eu ouvia a Abertura de 1812 sentindo sua grandiosidade, magnitude e força explodindo em meu peito fazendo vibrar todas as minhas células. Após conhecer a história, cheguei a pensar: “Ah, sim, uma música assim tem tudo a ver com a vitória de um exército em uma guerra...” E só. Minha experiência permanecia no plano da sensibilidade idiossincrática, sem grandes interesses voltados para a história – e menos ainda, claro, para a guerra, que não faz meu gênero.
Mas diante da compaixão, do exercício de sentir-com meu marido – que apesar de próximo também é, para mim, um homem de gostos e experiências tão distintos dos meus – me acordei para um aspecto crucial desta música de cunho político e histórico. Em um dos temas da obra, em momento clímax, as trombetas reboam um trecho bem conhecido... Meu marido, entusiasmado, não se cansava de repetir ao meu lado aquela melodia, juntamente com a orquestra. Aquilo entrou em minha memória, dessa vez pela via da história das guerras, mais do que da música, e ficou reboando, ecoando... Já ouvira aquela melodia em outro lugar. Não fora em outras ocasiões, na própria “1812”, mas sim em outro lugar, em outra música! Como assim? Onde seria? Não estamos tratando de uma obra prima?
Sim. Mas num sobressalto de quem está conectado à história daquela guerra entre Rússia e França, surgiu-me “A Marselhesa”, hino nacional francês, bem no cerne desta obra russa, comemorando sua vitória exatamente sobre a França. Num ato explicitamente antropofágico, Tchaikovsky apoderou-se do que poderia haver de mais sagrado para um povo: seu símbolo máximo, seu hino. Devorou-o “sampleando” aquele trecho inicial da “Marselhesa” em meio ao “hino” da vitória dos russos.
A Marselhesa, hino nacional e, mais que isto, hino da conquista democrática na França – e por tabela no mundo ocidental – estava agora sendo devorada pelos russos. Como o trunfo em um ritual antropofágico, a Rússia derrotava a França e absorvia a força do inimigo, alimentando-se de seu símbolo maior. Deste modo, por séculos, os russos seguiriam alimentando-se da força francesa, da cultura ocidental – num ato de canibalismo cultural.
A vitória real dessa história talvez possa ser observada de um outro ponto de vista também. Diferente de carne, não se rouba, não se troca ideias, mas se multiplica. Cultura se multiplica, se transforma, se funde e se confunde. Passados cem ou duzentos anos, é maravilhoso poder entender essa história – as tramas e os sentimentos complexos de uma cultura representados na música feita por um homem.
Possivelmente esta simbologia na “Abertura 1812” – a inserção da “Marselhesa” como um ato antropofágico – pode já ter sido percebida e analisada por outros estudiosos. Mas me encanta e me apraz o fato de eu ter percebido isto finalmente, por mim mesma. Trabalhando minha sensibilidade a serviço das vivências de outra pessoa, conectada com minha experiência intelectual, cheguei a esta conclusão, então nova para mim. 
Nesta mesma noite me acordei também para outro “sampler” que thcaikovsky fez, agora em sua própria obra. Dez anos mais tarde, ao compor para um ballet infantil e fantasioso, comemorativo da festa de natal, ele inseriu no “Quebra-Nozes” um trecho de sua grandiosa obra guerreira – “Abertura 1812”. Trata-se de um trecho mais melodioso, no momento em que garotos de “O Quebra-Nozes” brincam de soldado com seus cavalinhos de pau e suas espadas de madeira. Com música e leveza, a força e pujança de uma nação pode se perpetuar através de gerações.